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O FANÁTICO TORCEDOR CHAMADO HENFIL

Maracanã lotado, tarde de um fim de semana dos anos 1960. O jogo corria normal quando torcedores do Botafogo soltaram um urubu carregando uma bandeira do Flamengo. Mais que uma provocação, uma crític

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Estadão - Ubiratan Brasil

Maracanã lotado, tarde de um fim de semana dos anos 1960. O jogo corria normal quando torcedores do Botafogo soltaram um urubu carregando uma bandeira do Flamengo. Mais que uma provocação, uma crítica pesada: para os alvinegros, os flamenguistas não passavam de favelados que reviravam o lixo em busca de comida. Ou seja, urubus. A resposta, em alto nível, veio estampada na edição do Jornal dos Sports do dia seguinte: o desenho de um adorável urubu vestindo a camisa do Flamengo.

“Antes de revidar no mesmo nível, ele preferiu o bom humor e adotou o bicho como mascote do time”, conta Ivan Cosenza de Sousa, filho do autor do cartum, Henrique de Sousa Filho, mais conhecido como Henfil. Flamenguista doente, ele iniciava ali um apaixonado canal de comunicação com a torcida que, seguindo seu conselho, adotaria a provocação e acolheria o urubu, para o desespero dos adversários. Uma relação que duraria até o fim dos anos 1970 e que seria retomada nos 80, resultando em um farto material cujos cartuns mais preciosos estão no livro Urubu (144 páginas, R$ 25), que a editora Desiderata lança nesta semana.

Dividido em capítulos (Urubu, Futebol e Rei Zico), o livro trata, em sua primeira parte, das conquistas do bicampeonato e do tricampeonato carioca e relembra a derrota do tetra, além de recordar as participações dos jogadores que passaram pelo clube. O segundo abrange o futebol como tema geral: assuntos que permanecem atuais, como a gozação entre torcidas (nem sempre decidida civilizadamente), além da eterna insatisfação com a arbitragem e, até mesmo, a evasão de renda dos times.

O último capítulo é dedicado ao maior ídolo rubro-negro, lembrado tanto por seus momentos gloriosos (as grandes conquistas, os golaços) como pelos dramáticos (os problemas com o joelho, o pênalti perdido contra a França, na Copa de 1986). Uma veneração tamanha que Henfil chegou a desenhar Zico como o Flautista da Gávea, uma citação à fábula do flautista de Hamellin, em que o craque tocava uma música e era seguido por uma fila de bolas encantadas.

“Henfil era descaradamente torcedor nos cartuns, mas também generoso com os outros times, a ponto de criar mascotes para eles também”, lembra Ivan, enumerando o Bacalhau (Vasco), Cri-cri (Botafogo), Pó Pó (Fluminense) e Gato Pingado (América). “Sua paixão pelo Flamengo era tão evidente que os outros mascotes até reclamavam nas tiras, o que despertava simpatia dos demais torcedores. Uma atitude inteligente, pois conquistava a leitura também dos rivais.”

Na verdade, os flamenguistas o seguiam como guru – se o Urubu sugerisse uma faixa contra um determinado dirigente, no treino seguinte era batata: a faixa estava lá. Se lançasse um concurso da maior bandeira, o Maracanã no domingo seguinte seria encoberto por flâmulas monumentais. Até para o inexplicável encontrava respostas, como o maldito pênalti perdido por Zico no jogo em que o Brasil foi desclassificado pela França na Copa do México, em 1986. No dia seguinte, a ressaca foi brilhantemente combatida com um quadrinho reproduzindo a cena e a seguinte legenda: “Defendeu Deus!!!”

Ciente do poder hipnótico de seus desenhos, Henfil procurava usá-los também para o bem. Para minimizar a enorme rivalidade entre Vasco e Flamengo, por exemplo, que sempre beirava a violência, ele tornava Urubu e Bacalhau em cúmplices nas brincadeiras com os outros mascotes. “A força de suas tiras chegou a um grau tão acentuado que, nos últimos anos, ele desenhava em apenas 20 minutos, mas passava mais duas horas analisando o cartum, tentando descobrir algum detalhe que pudesse incentivar uma perigosa discórdia”, conta Ivan.

O resultado foi abandonar a família de mascotes, no fim dos anos 1970, depois de ter publicado nas páginas do Jornal dos Sports e da revista Placar. “Foi um fato inédito: parar por causa do excesso de retorno.” O silêncio durou pouco e, com a série de conquistas mundiais do Flamengo, Henfil voltou a desenhar, dessa vez para o jornal O Dia. Até sua morte, em 1988, aos 43 anos, em decorrência de problemas causados pela aids, Henfil manteve sua paixão pelo rubro-negro. “Ele foi um autêntico cronista da história do Flamengo”, diz Ivan.