Notícias

Canal 100 - Enferrujado, futebol-arte tenta vencer o tempo

Entrevista com o conselheiro rubro-negro Alexandre Niemeyer, dono do Canal 100, transcrito do jornal OGlobo

Por - em

Entrevista com o conselheiro rubro-negro Alexandre Niemeyer, transcrito do jornal OGlobo

Enferrujado, futebol-arte tenta vencer o tempo

Com 70 mil minutos de imagens de Pelé a Romário, Canal 100 busca preservação e novo caminho na internet\ Pedro Motta Gueiros \

O Globo

O nome do cinejornal multiplicado pelo número da camisa de Pelé é igual à marca atingida por Romário. Nos 30 anos que separaram o nascimento de dois artilheiros dos mil gols, o Maracanã foi palco de um futebol de cinema. As primeiras imagens do Canal 100 foram captadas em 1957 junto com os passos daquele rapaz que logo ganharia topete de rei e sucessores a desfilar na cadência do samba de Luís Bandeira. Além do apogeu do futebol nacional, as câmeras de Carlinhos Niemeyer acompanharam a Era Zico e o despertar de Romário. Em 1986, foram desligadas como se mais beleza não pudessem captar. Hoje, o futebol-arte e o acervo de 70 mil minutos pedem socorro, mas basta um clique para o passado voltar em tempo real.

- Estamos exibindo filmes antigos e novas imagens para atrair os jovem e as atenções para a necessidade de restaurar o acervo - disse o herdeiro Alexandre Niemeyer, que se dedica à preservação ao mesmo tempo em que aponta a lente para o futuro no www.canal00.com.br.

Narração de Cid Moreira e estética do Cinema Novo

Nascido no mesmo ano do canal, a vida de Alexandre está misturada às quase 10 mil latas de filme. Na infância, em vez de ferrugem e do mofo que hoje se acumulam, os filmes exalavam o frescor das novidades. Num tempo em que o jornalismo na TV ainda era incipiente, por força de lei o cinema apresentava uma revista semanal de 10 minutos. Nos últimos quatro, a tela grande e o plano fechado agigantavam os ídolos e as emoções do Maracanã. Com a locução de Cid Moreira, e os tambores repicando vendo a rede balançar, o cinema era um canal em que beleza do jogo se multiplicava centenas de vezes.

- Aquilo veio do Cinema Novo, da estética do documentário. - disse, Alexandre, lembrando que o pai trabalhou com Nelson Pereira dos Santos em "Garrincha, Alegria do Povo", antes de pôr a câmera e os conceitos do canal nas mãos e na cabeça de Francisco Torturra. - Ele deu segmento à magia. Fotograficamente, o barato é que não havia placa de publicidade. A lente pegava só jogador e torcida.

O coração registrava muito mais. Suas recordações vêm dos tempos em que crianças podiam correr pelas ruas e o futebol no cinema era a maior diversão. Toda a sexta-feira, Alexandre saía da escola em Botafogo com um bando de amigos rumo à produtora na vizinhança para ver a edição que entraria no circuito. Hoje, ainda está acompanhado na missão de fazer os jovens correrem em busca das novidades. Com a restauração de outros arquivos na bagagem, seu sócio Luís Carlos de Oliveira é um descobridor de tesouros:

- Os donos não têm o direito de esconder os acervos, fazem parte da nossa cultura.

Longe dos cinemas desde uma mostra nos anos 90, o Canal 100 está mais perto da natureza. Numa montanha à beira-mar, a casa tem portas abertas para o passado. Quem chega de carro é acompanhado por dóceis labradores até que os latidos de um rotweiller no desembarque avisa que o local inspira cuidados. Escondidos numa bolha verde de Mata Atlântica, os melhores momentos do Maracanã repousam ali, enquanto desumidificadores trabalham sem parar.

O refúgio de Niemeyer tem ares de sítio. Rural e arqueológico, capaz de oferecer novas leituras da história. Para cada edição do Canal 100, há uma sobra de 50 minutos de futebol. As velhas novidades estão em latas de filmes, que desenrolados seriam capaz de unir os 2 mil km entre o Rio de Janeiro e Garanhuns, a cidade do presidente Lula. Na falta da mesma ligação com o governo, como nos tempos em que Getúlio Vargas legislou pela obrigatoriedade da produção nacional nos cinemas, resta o interesse público em torno do acervo.

O programa já tem 10% de seu acervo digitalizado. Além de futebol, há Fórmula-1, eventos sociais e desfiles de misses que somam 100 mil minutos. Cada hora do processo, que transforma cinema em vídeo, custa R$600. A solução precisa ser global. O público, com internautas até na Coréia, e Alexandre esperam pela aprovação de proposta de financiamento para restaurar o material mais ameaçada, de 1958 a 1964.

- Hoje, há salvação para tudo no cinema - afirmou.

Desde o milésimo gol de Pelé ao primeiro de Romário numa final, o passado está a salvo. Zico era uma franzina promessa quando foi filmado pela primeira vez ao chegar à Gávea:

- Fizemos o primeiro jogo dele, com a camisa sete - lembrou Niemeyer, saudoso do cinejornal, dos melhores momentos do seu Flamengo e do pai, morto em 1999, aos 72 anos.

- Aqui, eu volto àquela época - disse, em meio às latas.

Canal 100 esteve em quatro Copas e fez dois longas

Em 1963, viu seu primeiro jogo, um Fla-Flu no Maracanã. Eram os momentos mais delirantes do Canal 100 e do futebol brasileiro. Em 1969, Carlinhos conseguiu autorização para sobrevoar internamente o anel do Maracanã num helicóptero para filmar os 183.341 torcedores que quebraram o recorde de público no 1 a 0 sobre o Paraguai, que classificou o Brasil para a Copa do México. O cinejornal esteve nas Copas de 1966, 1974 e 1982 e deu origem aos longas "Brasil Bom de Bola" e "Histórias do Flamengo".

Agora, com a tecnologia digital, pretende estar perto da seleção e do Maracanã outra vez. Do sítio para o site, falta multiplicar os gols de Romário pelo nome do cinejornal para que os 100 mil minutos do arquivo estejam ao alcance da mão, dos olhos e do coração. Com um clique.